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  • Foto do escritorKeyla Fernandes

O Brinco de Pérola Negra

Atualizado: 16 de abr.

Conto de Keyla Fernandes.


Inspirado pela obra de H.P. Lovecraft.



Ilustração do rosto de perfil de uma mulher de cabelos verdes em meio a algas com traços escuros.
Detalhe das páginas teste da HQ O Brinco de Pérola Negra. Arte por Marília Diogo

Sobre o conto


Escrevi O Brinco de Pérola Negra em 2014.

Foi inspirado por um sonho (e por Lovecraft, claro, que também se inspirava em sonhos para escrever).

E acho que foi depois desse conto que percebi que eu realmente gostava e queria escrever.

Embora já tivesse escrito coisas antes, nunca tinha escrito algo tão legal, ou com tanta seriedade. Algo que eu realmente tivesse gostado e quisesse mostrar para outras pessoas.

Já publiquei no Wattpad e participei de um desafio literário com ele.

Ele também foi rejeitado por uma revista de contos de horror.

Mas continua sendo um dos meus contos favoritos, por isso o escolhi para estrear na categoria “Contos” da Oficina do Diabo.

Tenho muito orgulho de tê-lo escrito, e ele, inclusive, quase ganhou um roteiro pra virar HQ, e tem até algumas artes feitas pela talentosa Marília Diogo (@lilathevenom), que estarão abaixo ao final conto.

Inspirada por meus pesadelos com afogamento e obras como Dagon e A Sombra de Innsmouth (e suas joias), eu escrevi O Brinco de Pérola Negra.

Agora, ele foi editado e revisado mais uma vez, para que eu pudesse compartilhar com vocês

Espero que gostem.


O Brinco de Pérola Negra


O Sonho


A água vem de repente e quando percebe já está submersa. 

O ambiente é reconfortante e cálido, mas ainda assim ela nada para cima. Sente como se não pertencesse àquele lugar, e há uma ameaça subliminar realçando que por mais confortável que se sinta ali, precisa ir embora o quanto antes.

Algo agarra seu tornozelo.

É gelado e escorregadio, porém possui grande força. Logo seus membros são alcançados por coisas que lembram braços esguios feitos de alga.

Tentando se livrar das monstruosidades, começa a se debater. A água se torna turva e o ar escapa rápido pelas narinas. Não importa o quanto tente, não consegue se soltar. Eles a puxam para baixo, não a deixarão partir.

Seus pulmões se enchem de água e suas forças se esvaem.

Eles chamam por ela.



Sobre os Baxter


Os Baxter são uma dessas grandes famílias tradicionais. No passado, contavam com mais membros, mas atualmente se resumem ao senhor e a senhora Baxter, seus dois filhos e seus netos.

Possuem uma casa na praia há muitos anos, tantos que o senhor Aurélius Baxter não sabe ao certo quem a construiu e nem quando. Usam-na sempre quando querem relaxar. E todo Ano Novo, a família se reúne sem a presença de convidados para comemorar e honrar suas tradições.

A casa fica em um trecho distante e escondido na mata litorânea. Após duas horas subindo uma estradinha escondida, chega-se a uma clareira onde é possível ver a construção. O musgo rasteja do chão até as pedras mais baixas, como pequenos tentáculos que a envolvem lentamente. Atravessando este espaço se encontra uma peculiar encosta com vista para o mar. 

Como se tivesse sido construída por mãos humanas, é formada por enormes rochas claras, ovais e achatadas, cuidadosamente empilhadas de forma a deixar pequenos espaços entre uma e outra, demonstrando que quem a construiu tinha uma noção de equilíbrio invejável. Com trinta metros de altura, se estende por quatro quilômetros, até acabar em um precipício. Nada além do oceano se vê daquele lugar.

Este é o santuário da família, onde vão se refugiar da civilização e honrar suas tradições familiares. 

Um local sagrado e secreto.



O Brinco


O jovem Pietro Baxter acabara de se formar em engenharia, e estava profundamente apaixonado por uma linda mulher chamada Cordélia. Ele já havia falado em casamento, e a família já se preparava para receber a moça em seu seio, mesmo quando ela, ao contar que era chef de um restaurante especializado em frutos do mar, causou um leve desconforto em seus sogros.

Contudo o coração dos apaixonados afeta seu juízo, e em uma tarde verão o jovem Pietro ultrapassou os limites do bom senso, quando resolveu "fugir" com a namorada até um lugar romântico para fazer o pedido oficial. A fuga em si não tinha problema algum, mas… bem, chegaremos lá.

É claro que, sozinho, Pietro demorou mais para chegar até a casa. Mas não importava, Cordélia havia amado o lugar. 

Primeiro ele a levou a encosta. A moça achou tudo muito bonito e intrigante, porém se recusou a se mover muito, pois o mar lá embaixo parecia raivoso, assustando-a um pouco. Ali, Pietro lhe deu de presente um belíssimo par de brincos de pérola negra, herança de sua avó e, que ela descobriria mais tarde, fazia conjunto com o anel de noivado.

Pietro nunca se sentiu tão feliz quanto no momento em que Cordélia disse o tão esperado sim.

O dia foi calmo e mágico, e após duas garrafas de vinho e um sexo inacreditável, ele começou a falar e falar. 

Falou sobre a casa, a encosta e suas tradições familiares. Pediu que Cordélia fosse paciente e compreensiva, pois os Baxters eram pessoas comuns, porém com tradições diferentes, e implorou para que ela não contasse aos seus pais dessa pequena viagem.

Ela não disse nada, e Pietro estava embriagado demais para perceber o receio nos olhos dela.

Porém, como a senhora Baxter sempre dizia, existem consequências para todas as nossas ações. Duas semanas depois Pietro recebeu uma carta de Cordélia dizendo que não poderiam mais se ver, e devolvendo o anel e apenas um brinco.

Pietro ficou arrasado, mas a culpa era sua. "Jamais fale de nossas tradições a quem não é da família." A moça saberia, quando fosse a hora, no entanto Pietro havia estragado tudo.



O Livro


Cordélia nunca se esqueceu do dia em que fora pedida em casamento e teve de quase gritar o sim por conta do intenso som das ondas quebrando na encosta. Também jamais esqueceu que, após adormecerem nus no sofá, uma brisa gelada a acordou e ela, ainda com a cabeça rodando, saiu pela pequena casa procurando um cobertor.

Em um quarto vazio, encontrou um antigo armário de madeira e o abriu procurando alguma coisa com o que se aquecer. Puxou uma manta dobrada na divisória de cima, derrubando algo pesado no chão.

O livro de capa marrom não tinha título, apenas as iniciais A.B. em elegantes letras douradas no canto inferior direito. Cordélia pensou que seria melhor devolvê-lo ao lugar onde estava, mas toda aquela conversa de Pietro, além de tê-la assustado, despertou-lhe certa curiosidade.

As páginas estavam cheias de anotações e desenhos feitos à mão com uma caneta muito fina de tinta preta. As criaturas esboçadas ali pularam para dentro de sua mente, e ela soube que teria sido muito mais sábio não ter aberto aquele livro.


***


Mesmo após vinte anos, um marido e uma filha, Cordélia ainda guardava um dos brincos. Ele ficava envolto em um lenço de seda, no fundo de sua gaveta de calcinhas.

Desde que havia colocado os olhos nas páginas perturbadoras daquele livro, ela teve pesadelos, e eles continuaram por duas décadas. 

Um deles sempre se repetia: estava deitada em uma doca vazia de olhos fechados, quando de repente a maré começava a subir e, ao abrir os olhos, percebia ser tarde demais. Estava embaixo da água, muito fundo, e só conseguia enxergar o contorno da doca sumindo acima dela. Tentava nadar, mas era como se algo a segurasse e puxasse para baixo. Então via-se com as pernas e os braços enrolados em algas espessas que lembravam mãos enrugadas enquanto seus pulmões se enchiam de água.

Acordava assustada, e sempre se lembrava de Pietro.

Inicialmente os sonhos eram frequentes, ocorriam todas as noites. Mas com o tempo eles começaram a diminuir visitando-a algumas poucas vezes por ano.

No fundo não se importava.  

Apesar do terror sabia, de alguma forma, que era o brinco o causador dos pesadelos. Contudo, tanto esse pequeno e preciosos objeto quanto os próprios sonhos eram uma maneira de manter por perto seu antigo amor.




O Sacrifício


A filha mais velha, Helen Baxter, caminhava com o pai pela encosta sagrada. O conduzia com cuidado, pois ele já não era mais o mesmo homem forte e independente de sempre. As mudanças em seu corpo o fizeram perder a visão e ter dificuldade de caminhar tornando sua permanência na terra desconfortável.

Na casa, a senhora Baxter, com limitações semelhantes às do marido, preparava uma deliciosa refeição com a ajuda da esposa de Pietro. Este preparava a filha adolescente e o sobrinho para a caçada daquele dia.

Aurélius chegou de sua caminhada e sentou-se em sua poltrona. Respirava com dificuldade, e mesmo com os olhos apáticos e leitosos, ainda tinha uma expressão severa. Solicitou que todos se reunissem a sua volta.

— É chegado o nosso tempo. O tempo pelo qual tanto esperamos, quando receberemos a recompensa por manter viva nossa tradição.  Esta noite as estrelas estarão alinhadas e nos reuniremos com nossos antepassados.

Todos sabiam o significado daquilo. Estremeceram em um misto de terror e euforia. Pietro sentiu a pressão do brinco em seu bolso.


***


Perigosamente perto da casa, um jovem casal acampava. Não perceberam, mas foram notados por algo que habitava aquele lugar há muitas eras, algo que guiou Pietro e seus jovens pupilos caçadores até o local.

Naquela noite houve uma tempestade repentina e o mar ficou escuro e revolto. Enormes ondas se formavam, e turistas que observaram o fenômeno juravam ter vistos formas enormes e bizarras nas ondas iluminadas pelos raios.

Aqueles que podem sentir essas coisas souberam que algum fenômeno muito antigo acontecera. Palavras há muito esquecidas foram proferidas enquanto sangue foi derramado. Nomes quase impronunciáveis de seres imemoriais foram proclamados, e depois... a calmaria.


***


Cordélia sonha.

Afunda no mar, mas dessa vez Pietro está lá tentando salvá-la, puxando-a pela mão em direção à luz que brilhava lá em cima. Porém, não importa o quanto eles nadem, jamais chegarão à superfície.


***


Na semana seguinte, o desaparecimento de um casal que havia saído para acampar foi reportado.  O GPS do celular de um deles levou o grupo de busca até uma parte afastada da mata, onde apenas a barraca e os pertences foram encontrados.






Epílogo


No verão após a terrível tempestade, Elisa, a filha de Cordélia, vai para a praia com um grupo de amigos. Em sua orelha, usa o brinco de pérola negra que encontrou, sem a mãe saber. 

Durante uma trilha, Elisa e seus amigos acabam chegando a uma casinha feita de pedra em uma clareira.  Lembrando das histórias da mãe, a jovem segue o caminho e encontra a encosta assustadoramente simétrica para ter sido obra da natureza.

Dentro da casa ela descobre os antigos segredos dos Baxter guardados em um livro poeirento.

No dia seguinte, somente Elisa retorna de sua caminhada.

Cordélia nunca mais teve pesadelos.





Páginas da tentativa de HQ de O Brinco de Pérola Negra. Roteiro de Keyla Fernandes, arte de Marília Diogo.



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