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Risca Faca

Conto de Keyla Fernandes


Sobre o conto


Esse é um conto recente. Escrevi há poucos meses para uma antologia, mas ele não foi selecionado. Então dei mais uma revisada e vi que, realmente, algumas coisas precisavam ser melhoradas, editei de novo e agora compartilho com vocês

Esse conto é meio que uma experiência, pois eu nunca tinha escrito nada tão gore, e também é uma preparação para o o livro que está por vir.

Espero que gostem do meu conto trasheira e de mau gosto.







Risca Faca

Todo mundo estava falando do novo bar.

Risca Faca era o nome desse lugar super em alta que havia atraído a atenção de jovens ricos e entediados.

Eu me lembro de ter passado em frente meses atrás, voltando bêbada da balada com alguns amigos. Acabamos nos perdendo e saindo nessa rua estreita do centro, cheia de lojas pichadas e bares duvidosos. Um se destacava pela luz vermelha.

Na entrada de aspecto decadente, uma portinha dava para um ambiente oculto, e do lado de fora, havia uma mulher encostada na parede, fumando despreocupada. Não era muito alta, tinha o cabelo cacheado, curto e tingido de vermelho, usava uma saia também vermelha de um tecido vagabundo que imitava o couro, e um top preto do mesmo material. A roupa se apertava sobre os seios grandes e a barriga saliente, a meia arrastão fazia sulcos nas coxas grossas. Ela se equilibrava em botas de salto finíssimo enquanto fumava seu cigarro como se não estivesse sozinha em uma rua perigosa de madrugada. 

Lembro-me de colocarmos a cabeça para fora para insultá-la. Rimos de seu corpo e suas roupas, mas a mulher nos olhou inalterada, tragou o cigarro e soltou a fumaça pelos lábios escarlate como se nem estivéssemos ali. Engraçado como a imagem dela ficou marcada na minha memória.

— Aquele lugar não é um puteiro? — perguntei quando Marcus veio nos convidar para ir na noite burlesca do Risca Faca, pois o estabelecimento estava fazendo alguns eventos especiais de reinauguração. 

Ele havia ficado de DP em Direito Civil e fazia essa aula com os calouros. Fiquei surpresa com o convite, feito a mim sem nenhum intermédio, e também por descobrir que o Marcus, um dos caras mais ricos e populares da universidade, gostava desse tipo de coisa.

— Não é mais. — disse ele. — O bar mudou de dono, e manteve o nome porque eles queriam manter a vibe meio decadente pra lembrar os prostíbulos antigos, e tem toda essa coisa de sex positivity que tá na moda, agora. Estão falando que as garçonetes atendem de topless.

Segundo ele, o lugar era super exclusivo e havia uma fila de espera até o final do mês, mas sendo herdeiro da família mais rica da cidade, e ao que tudo indicava, do estado, Marcus podia conseguir qualquer coisa, e isso incluía entrar onde queria, por mais exclusivo que fosse o lugar.

— Olha lá, hein — disse William, namorado da minha melhor amiga. — Se eu chegar lá e só tiver aquelas putas velhas e um bando de traveco, eu vou meter tiro em todo mundo.

Marcus conhecia bem o William, acho que os pais deles frequentavam o mesmo clube de tiro, mas não gostava muito daquele jeito de machão, dava para ver de longe. O Marcus até podia ser um cara popular, podre de rico mas, ao contrário dos caras menos ricos e bem menos interessantes que ele, não era babaca, além disso também era super educado e elegante, dava a impressão de ser intocável, sabe? Se eu curtisse caras, talvez o achasse atraente. 

Marcus deu um meio sorriso, fingindo gostar da piada idiota, e garantiu que o lugar era incrível e bem frequentado, pois havia caído nas graças das pessoas dos bairros nobres, como havia acontecido com os bares onde se bebe em pé, ou as barraquinhas de comidas de rua que viraram food trucks com preços exorbitantes.

No sábado, encontrei a Liliane, minha melhor amiga, e fomos juntas até o bar. O pai dela nos deixou lá na frente, e quando descemos do Mercedes prateado, vimos uma fachada toda pintada em preto e vermelho, com um toldo de tecido vinho cobrindo a porta emoldurada em um batente dourado, onde havia um segurança alto vestindo um terno finíssimo. A placa com o nome “Risca Faca” escrito em uma fonte elegante, e o desenho de um punhal com uma gota de sangue, era iluminada pelas lâmpadas redondinhas e amarelas penduradas sob o toldo. 

O William já estava lá, com um copo enorme na mão, com ele estavam o Sérgio e a Gabi, que eram namorados, e o Pablo, irmão da Gabi. Todos frequentavam a mesma faculdade, mas a Gabi fazia veterinária e o William, medicina. Os outros todos estavam em algum ponto da graduação em Direito. 

Já era quase meia noite, havia pouca gente na fila e ainda assim, ninguém mais tinha entrado, e quando dei por mim, estava achando tudo estranho e já tinha decretado a morte do rolê ali mesmo. E então o Marcus chegou num carrão preto, e desceu todo empertigado, parecendo um lorde vampiro de filme, todo de preto, anéis elegantes espalhados pelos dedos com cuidado para não pesar o visual, e um sorrisão no rosto.

— E aí gente, tomara que não tenham esperado muito.

A gente tinha esperado para cacete, mas ninguém ali queria desagradar o Marcus então todo mundo sorriu e disse que estava de boa. 

Ele pediu para o seguirmos e foi direto cumprimentar o segurança, deixando as pessoas na fila atrás de nós bastante frustradas, para dizer o mínimo. Eles trocaram algumas palavras e o homem abriu o caminho, mas barrou o William, por causa do bendito copo.

— Sério isso? — questionou ele, meio bêbado. — Marcus, fala pro cara que eu posso entrar.

— Pode sim, senhor, mas sem o copo. — disse o segurança.

William riu e encarou o homem, muito mais alto e forte.

— Irmão, eu entro onde eu quero, com o que eu quero. Tu sabe com quem tá falando?

O segurança inclinou a cabeça de leve e respondeu em um tom calmo e de sutil ameaça:

— Não. Por que eu deveria saber?

O rosto de William ficou vermelho e ele levou a mão às costas, mas o Marcus segurou.

— Opa, opa, deixa disso, Will. O cara tá só fazendo o trabalho dele. Deixa essa merda de copo aí, lá dentro tem bebidas muito melhores que esse uísque vagabundo com energético.

A contragosto, e visivelmente ofendido pelo lance do uísque, William obedeceu e todos entramos sob o olhar indiferente do segurança. Tive de segurar o riso, pois achei muito satisfatório ver aquele folgado levar uma mijada do grandão e ser insultado pelo Marcus, tudo em menos de um minuto.

Entramos por um corredor iluminado apenas por uma lâmpada vermelha. O chão era macio, e imaginei o sofrimento de quem deveria limpar o carpete de alta qualidade, todos os dias, depois que um bando de bêbado derrubasse uma infinidade de coisas sobre ele. 

Havia um cheiro suave e de uma doçura sutil no ar que estava um pouquinho abafado, mas estávamos no vento frio da madrugada até instantes atrás, então era normal sentir essa mudança brusca na sensação térmica. As paredes talvez fossem vermelhas também, mas podia ser só o efeito da luz.

— A gente tá entrando no inferno? — sussurrei para Liliane, que deu uma risadinha.

O Marcus riu também, e foi muito mais genuíno do que quando fingiu gostar da piada escrota do William. 

Saímos em um espaço amplo e menos abafado, a iluminação era agradável e discreta, como se os cantos escuros fossem necessários para esconder segredos. Em cada mesa redonda, havia uma pequena vela preta, vermelha ou roxa dentro de um copo de uísque, o chão era de uma revestimento epreto brilhante, e as paredes eram cobertas com um tipo de papel de parede bordô, com padrões dourados intrincados que naquele momento pensei se tratar de motivos florais.

Ali, o cheiro doce do corredor se dissipou e deu lugar a uma miríades de aromas de diferentes bebidas, temperos, gordura e perfumes caros. Senti meu estômago revirar um pouquinho, mas respirei fundo. 

Do lado esquerdo havia um bar com balcão de mármore escuro e uma parede de espelho repleta de garrafas, e à frente, bem ao centro, um palco em meia lua com alguns instrumentos dispostos, decorado com uma cortina de veludo púrpura.

Eu não conseguia decidir se havia achado o local brega ou chique, porém tudo estava limpo, bem cuidado e a iluminação baixa era a aconchegante.

Fomos levados até uma mesa por um rapaz bem bonito vestido com uma calça de couro e uma harness cor de rosa. Ele foi muito gentil, porém quando se afastou, William disse:

— Ih, alá. Começou mal com um veado atendendo a gente. Oh Marcus, você que parece conhecer melhor o lugar, manda falar que a gente quer uma mina atendendo. 

Por mais que a ideia me agradasse, fiquei mal por ver a Liliane apenas abaixando a cabeça e suspirando.

— Will, relaxa — disse Marcos. — Eu te falei, a experiência aqui é bem diferente dos bares que você conhece. Aqui é um lugar para pessoas de  bom gosto, mente aberta, e carteira cheia. Não aquelas baladas lotadas, abafadas com bebida e música ruim que você gosta de frequentar.

Todo mundo riu e o William ficou vermelho.

Eu estava adorando ver ele pianinho na frente do Marcus, até fazia o desconforto do vestido apertado e salto alto valerem a pena. Além disso, a Liliane tinha gostado muito do meu look. Ela mesmo havia me ajudado a escolher detalhe por detalhe, e me elogiou horrores.

O Marcus era uma pessoa surpreendente mesmo. Para mim era comum ver caras assim, bonitos e super ricos, como o cúmulo da arrogância, preconceito e babaquice, contudo, de todos nós, ele, com certeza, era a pessoa mais legal e tranquila. Não era só o dinheiro que abria portas para ele, mas seu jeito de tratar as pessoas, falando com todo mundo como se fossem amigos de longa data. E sim, falando assim até parece que eu estava a fim do cara, mas não. Eu admirava ele, queria ser igual a ele, sabe? Entre todos ali, só ele parecia confortável na própria pele, e não precisava fingir nem esconder nada para ser aceito, porque todo mundo queria ser aceito por ele.

Em outra realidade, eu até poderia me apaixonar por ele, tudo teria sido mais fácil.

Uma moça se aproximou, usava saia preta, curta e trazia a bandeja junto ao corpo, cobrindo o peito. O cabelo escuro estava preso em um coque alto, e a maquiagem era muito bem feita e sexy.

Ela perguntou o que íamos pedir, e quando começamos a listar as bebidas, moveu a bandeja para poder anotar os pedidos no celular, revelando um tipo de segunda pele de um tecido preto, fininho e translúcido que deixava os seios à mostra. A garçonete se portava como se fosse a coisa mais normal do mundo. Como se seus seios não tivessem nenhuma estria, ou se sua barriga fosse lisinha e trincada, porque ali, ninguém parecia se importar com isso.

— Primeiro um veado, agora uma baranga. — comentou Pablo.

— Eu achei ela bonita. — acabei soltando, sem querer. 

— Claro que achou. — murmurou William, com um risinho de deboche.  — Viu Marcus, prefiro minhas baladas com um monte de gostosa se esfregando em mim. 

Liliane deu um tapinha no ombro do babaca e pediu para ele não falar essas coisas, mas como resposta recebeu um olhar azedo e as seguintes palavras:

— Que? É verdade, ué. Eu não faço nada, elas que vem pra cima de mim. Fala se não é bom, Sarah? — Ele disse, tentando me desafiar.

— Ai Will, você tem uma visão muito limitada de beleza e diversão — disse o Marcus.

Eu só conseguia me perguntar por que uma moça tão bonita e fofa igual a Liliane se submetia a um relacionamento merda com um cara tão idiota? O William não era nem bonito nem rico o suficiente para bancar uma mulher do calibre dela, com seu cabelo loiro na cintura e um corpão esculpido na academia e alguns ml de silicone. E pelo que a própria Liliane havia me contado, também não era nenhum prodígio na cama. Cada vez que eu a via baixando os olhos para ele, me dava uma raiva, uma vontade de esfregar aquela cara de bunda no asfalto.

— Mas é verdade — disse a Gabi. Como gostava de agradar a macharada. — Pelo preço da entrada, as garçonetes deveriam ser tipo modelos da Victoria’s Secret. Pelo menos, os caras são bonitinhos, sarados. Mas tudo gay, com certeza.

— Quanto mais gay, melhor. — disse Pablo. — Sobra mais mulher pra mim.

Não, não sobra, pensei.

A noite foi seguindo devagar, com alguns drinks, petiscos caros demais pela quantidade ínfima de comida. Sorte eu ter comido antes de sair. Quer dizer, sorte não, foi estratégia. Sorte mesmo foi o Marcus estar junto, porque quando ele saía com a gente, sempre insistia em pagar a conta. 

Cá para nós, eu não tinha cacife para andar com essa gente, no entanto a Liliane e eu éramos amigas desde o ensino fundamental. Ela sempre foi uma boa amiga, gostava de mim de verdade e me carregava para todo lado.

Enquanto bebíamos e ouvíamos o Pablo e o William falarem merda sem parar, comecei a reavaliar as decisões da minha vida. O que eu estava fazendo ali com aquela gente?

Quer dizer, a Liliane era minha amiga, e apesar de meio trouxa, sempre foi uma boa pessoa. O Marcus também era gente boa, mas a realidade estava distante de todos ali, imagina de mim então. Tá, talvez até desse para salvar a Gabi, se ela não fosse tão maria-vai-com-as-outras e seca para agradar macho.

Mas, e se eu não fosse amiga da Liliane, eles ainda iam me deixar fazer parte do grupo?

Era muito cansativo viver sempre pisando em ovos, e medindo muito bem minhas palavras e ações para não ser olhada como uma monstruosidade. Com eles, eu frequentava lugares incríveis e festas absurdas que, de outra forma, eu não passaria nem perto, mas para isso, tinha de botar uma máscara bem maquiada, salto alto e fingir que tudo à minha volta era lindo e divertido. Por isso, só funcionava quando a Liliane estava junto.

Mas eu sentia uma profunda necessidade de estar naquele círculo de pessoas, de provar a elas que eu era uma pessoa que valia a pena ter por perto. E se eu quisesse sair do buraco que era a minha vida e ter, ao menos, um pouco de luxo, eles precisavam acreditar.

Fiquei um tempo perdida nesses pensamentos sem ninguém para me resgatar, pois na nossa mesa apenas duas vozes eram ouvidas, três, quando o Marcus comentava algo, mas ele estava bem quieto naquela noite, apenas um espectador.

Em algum momento, ergui os olhos e me deparei com o olhar dele fixo em mim, enquanto tomava um uísque com um meio sorriso sinistro desenhado nos lábios. Um arrepio gelado percorreu a minha espinha, subiu pela nuca e se alojou nos meus pensamentos, me fazendo crer que Marcus sabia todos os meus segredos, sabia tudo sobre mim. O senso de perigo apitou e resolvi que já tinha bebido demais, pois a paranóia já estava batendo. 

O som de algo quebrando me tirou do transe e desviou o olhar de todos para o Sérgio, até então calado. Ele havia jogado seu copo no chão e estava em pé, gritando com o William:

— Escuta aqui, seu filho da puta, se sua namorada aceita ser capacho, problema dela, mas você não vai falar com a Gabi assim não.

— Fica na sua aí, cara, você não sabe com quem tá se metendo. — respondeu William, estufando o peito como um galo de briga.

— Sempre com essa histórinha. — Sérgio riu. — Você é um fodido que acha que é alguma coisa, mas só não tá mais na merda porque a otária da namorada banca.

— Vai se foder, Sérgio — gritou a Liliane. — Até ontem tava querendo me comer, agora vem com essa.

As vozes foram se exaltando cada vez mais, cuspindo uma verdade atrás da outra, segredos confidenciados em momentos privados, com aqueles que confiavam um no outro. Alguns eu tinha ouvido direto da fonte, mas nunca imaginei que seriam revelados daquela forma.

— Também, com essa cara de vagabunda — continuou Pablo. — Me admira muito que o Will não seja o maior corno dessa cidade.

— E quem disse que não é? — falou Gabi, o despeito escorrendo pelos lábios com o drink.

Balbuciando impropérios, William avançou sobre Gabi, mas Sérgio interviu. Eles se engalfinharam e rolaram pelo chão, até serem separados por dois seguranças tão altos e fortes quanto o da porta.

— Senhores, senhores — disse uma voz feminina, rouca, carregada de sensualidade. — Para que toda essa comoção?

Eu me lembrava bem do rosto dela, do seu corpo, agora em um vestido preto longo com um enorme decote, evidenciando os grandes seios. Os cabelos estavam bem alinhados e a maquiagem impecável. Ainda era a mesma, mas estava muito diferente da mulher que insultamos naquele dia de madrugada na porta do bar. Ela levou o cigarro, preso entre os dedos macios de unhas vermelhas, aos lábios escuros e voluptuosos, deu uma longa tragada e soltou a fumaça sem pressa, como se no jogasse um feitiço inebriante, nos deixando estáticos, esperando por suas palavras.

— Esse é um local para diversão e prazer, não permitimos esse tipo de comportamento — disse ela, sorrindo e gesticulando em direção aos dois homens de cara inchada.  — Vou ter de pedir para os senhores se acalmarem, ou se retirarem do meu estabelecimento.

— Seu? — respondeu William com um brilho insano nos olhos. — Parece que ser puta vale a pena, né.

— Cala a boca William. — disse a Liliane, soluçando.

— Cala a boca você, vagabunda, logo vai ser a sua vez.

— Não fala assim com ela — explodi sem ao menos me dar conta. — Um escroto igual a você tinha de lamber o chão que ela pisa.

— E você quer lamber bem outra coisa dela, né Sarah. — Levei uns segundos para entender que quem tinha dito aquilo era a Gabi. O rosto vermelho e úmido dela se contorcia em um sorriso cheio de desprezo, seus olhos tinham as mesmas faíscas de loucura que brilhavam nos de William.

As palavras me atingiram como um soco, mas não fariam tanto estrago se não fosse a forma como ela me olhou, cheia de desdém e de um ódio antigo e sem razão. Meu corpo tremeu e meu rosto parecia estar em chamas. Mais um pouquinho e eu não ia aguentar, eu sabia, podia sentir o controle sobre mim escapando cada vez mais rápido. Se não estivesse paralisada….

O desespero que se apoderou de mim quando percebi a ausência de controle sobre meu próprio corpo é algo indescritível, abissal. Busquei respostas olhando de um lado para o outro, encarando os rostos vermelhos e contorcidos de alguns de meus “amigos”. Então a mulher falou:

— Esqueci que jovens tão bem criados como vocês não aprendem muito bem a se segurar, não é mesmo? — Ela olhou para mim do mesmo jeito que Marcus havia olhado a pouco, e dessa vez, não senti medo, mas um tremor nos membros, um calor se espalhando entre minhas pernas. — Não estou julgando, para ser sincera, não esperava menos. É que eu tinha planejado uma apresentaçãozinha antes da atração principal.

Todos no bar estavam tão paralisados quanto nós, as expressões confusas, as mãos grudadas nos copos, os petiscos meio mastigados ainda na boca, apenas os olhos desesperados, dançando, iguais aos meus, em busca de respostas.

— Que seja — disse a mulher, se afastando até o pequeno palco. Ela pegou o microfone, pediu a atenção de todos, como se tivéssemos alternativa, e continuou: — Obrigada por estarem conosco esta noite, e obrigada aos nossos queridos patrocinadores por nos presentearem com os recursos necessários para a manutenção de nosso pequeno empreendimento.

A mulher tragou o cigarro uma última vez, jogou no chão e pisou com o pé calçado em uma sandália alta de tiras douradas e finas. Percebi minha respiração alterada, ofegante, me desesperei para quebrar aquele encanto, correr até o palco e me jogar sob os pés bronzeados e macios dela. 

— Vocês foram selecionados a dedo, por diferentes motivos, é verdade, mas nenhum menos importante. O ímpeto da juventude, a confiança nascida do privilégio de uma vida sem muitas restrições. A incrível habilidade de se abster de si mesmo, seja por medo ou vergonha, e deixar outros controlarem sua personalidade, seus sonhos, desejos… —  respirou fundo, como se estivesse inalando o mais puro dos ares. — Tudo isso os fez especiais para nós, e somos gratos por tê-los aqui. — Seu olhar percorreu o bar sem pressa, saboreando o medo a confusão que possuiu a todos nós quando escutamos as portas sendo fechadas. — Agora, podem continuar.

A cena continuou, como se estivéssemos em um filme e ela fosse a diretora. 

Tudo parte da experiência, pensei, tentando compreender aquele desejo avassalador que havia me tomado e agora se confundia ao pavor, ao frio na barriga, que eu tentava ignorar, justificando a estranha paralisia usando uma vaga, e provavelmente falsa, memória sobre um fenômeno de hipnose coletiva. Ou talvez as demais pessoas já conhecessem o local, e estivessem habituadas ao show, representando seus papéis naquela peça amaldiçoada.

Um burburinho cresceu, e percebi as vozes exaltadas por todo o bar, vindo de todas as mesas.

Elas sempre estiveram lá? Ou nós que começamos?

— Queria ver você ser macho e se garantir sem essa merda. — A voz de Sérgio soou um tanto gutural, suas palavras entrecortadas, como se articulá-las fosse um esforço tremendo. William, com a mão vacilante, apontava uma arma para ele. Como ele conseguiu entrar com aquilo? Por que o segurança só reclamou do copo?

— Ah é, vou te mostrar o macho, então. — Willian avançou sobre Gabi com uma velocidade felina. Ambos caíram ao chão, e ela gritava furiosa enquanto arranhava o rosto dele. Sérgio foi para cima, puxando-o pela camisa. Tudo aconteceu tão rápido, mas ao mesmo tempo, para mim, era uma cena em câmera lenta se desenrolando na minha frente. As mãos da Gabi e o rosto do William pintando um ao outro de vermelho, as roupas e a pele dela sendo rasgadas em meio aos seus gritos estridentes. 

Um tiro, e vi Sérgio no chão sendo envolvido por um lago vermelho, William sobre ele, com a respiração rápida, a camisa aberta. Gabi surgiu da escuridão (quando havia ficado tão escuro?) empunhando algo, o soco de William a derrubou de novo, e só então ele compreendeu e começou a gritar. Algo prateado brilhava em seu pescoço, o cabo de uma faca, ou garfo, se destacava contra a cascata de sangue escorrendo pelo pescoço, pintando todo seu peito. Cambaleante ele levou a mão ao objeto e o arrancou. Seus olhos estavam arregalados, surpresos. O sangue jorrou com ainda mais força e de repente, Liliane gritava.

A vi no chão, se debatendo para se livrar de Pablo, que estava sobre ela, lambendo seu rosto como um cão descontrolado enquanto tentava arrancar-lhe as roupas.

Olhei em volta, e meus olhos pararam por alguns segundos em Marcus, sentado à mesa, as pernas cruzadas, postura relaxada enquanto bebia seu uísque, observando tudo como se assistisse um filme banal.

Um impacto fez meu braço estremecer e só então percebi o vidro estilhaçado caindo ao chão com o Pablo. Olhei para a garrafa quebrada em minha mão e tive de decidir se ajudaria Liliane a se levantar, ou se rasgaria a cara dele todinha.

Olhei em volta, e, sob o olhar interessado dos seguranças e funcionários, cenas parecidas  ocorriam por todo o bar. Não consegui segurar o riso, me lembrando da piadinha que havia feito na entrada: estamos no inferno

Em uma das mesas havia um homem deitado, nu, seus braços pendiam para fora e sua cabeça estava pendurada para trás, de modo que eu pude ver sua boca escancarada, de onde um som estridente brotava, Seu corpo se mexia rápidos espasmos enquanto três outras pessoas puxavam entranhas de sua barriga aberta como um mágico puxa lenços de sua manga. Eles riam, extasiados com os gritos e com o calor das vísceras em seus dedos.

Algo agarrou meu tornozelo. Uma garota rastejava com as mãos estendidas em um pedido de ajuda. Como uma lesma, ela se movia lenta e dolorosamente, deixando para trás um rastro viscoso. Metade do couro cabelo estava exposto e um líquido amarelado escorria pela boca enquanto ela tentava articular as palavras.

Uma náusea forte me golpeou e eu puxei o pé com força e acabei escorregando em algo molhado no chão.

Foi quando vi Liliane. Ela  estava sentada no chão, abraçada às próprias pernas, chorando baixinho. Engatinhei até ela,, minhas mãos deslizando sobre a superfície escorregadia. 

Chamei-a três vezes antes de ela me olhar com olhos perdidos e vazios. Toquei no ombro dela, 

— Lili, precisamos sair daqui, rápido.

Ela me olhou por alguns segundos, apertou os olhos, como se não me reconhecesse, então piscou, e eu vi brilhar em suas pupilas verdes, o mesmo ódio que havia visto no olhar de Gabi. Com um urro visceral, ela sejougou para cima de mim, me derrubando e me fazendo a bater a cabeça com força no chão.

Em um instante, ela estava sobre mim.

— Não. Encosta. Em. Mim. — Cada palavra vinha acompanhada de um golpe desajeitado, suas longas unhas arranhando a minha pele. — Sua nojenta, eu falei para você parar com essas coisas.

Suas mãos seguraram meu rosto, e antes da unha unha dura, alongada com fibra de vidro, se enterrar no meu meu olho esquerdo, pude ver os padrões dourados do papel de parede do bar se movendo em uma dança lenta de rostos se contorcendo de agonia e de prazer. 

Os gritos à minha volta tornaram-se ecos distantes, os pedidos de ajuda, as gargalhadas insanas e um miasma quase palpável formado pelo cheiro e exalações de sangue, excremento e outros fluidos tomou conta do ar.

A unha lacerou minha pele e deslizou por trás do globo ocular, rasgando o tecido. Demorei para entender aquela dor, até então desconhecida para mim. O sangue escorreu quente, entrou no meu ouvido e eu não conseguia mais reagir. Apenas quando a vi levantar segurando meu olho, vi o quanto Liliane queria me ferir. Sua atenção se voltou à pequena esfera ensanguentada entre seus dedos. Ela sorriu e o levou à boca com a delicadeza de quem come uma uva muito doce. Seus olhos se fecharam enquanto mastigava, um filete de vermelho escorreu pelo canto dos lábios delicados, lábios que um dia eu sonhei em beijar.

A quem eu achava que estava enganando. Todos sabiam quem eu era, e cochichavam sobre mim quando eu não estava perto. Me mantinham por perto na esperança de me “concertar”, ou apenas para ter alguém para olhar de cima e se sentir maior. E eu, eu sabia quem eles eram, também, e aceitei os termos não ditos de nosso contrato. Eu os tolerava, pois havia algo em troca. 

Meus dedos ainda estavam agarrados à garrafa quebrada, e quando o vidro entrou no rosto de Liliane e rasgou sua pele perfeita, senti um profundo alívio. Nunca pude provar o gosto de seus lábios, sua pele, mas pude provar de seu sangue, que me banhou como uma cascata sagrada. Toda a tensão, toda raiva e frustração acumulada, escondida bem fundo no meu coração, evaporava a cada golpe. E logo ela caiu ao meu lado, como uma boneca de porcelana danificada pelo tempo, respirando com dificuldade.

Eu entendia agora e queria contar aos meus amigos que eles poderiam me desprezar agora, e eu poderia odiá-los, pois tudo aquilo não passava de um contrato. Não precisávamos mais fingir, não era incrível?

No entanto, eles estavam quietos, muito quietos. 

Um som gorgolejante me chamou a atenção.

William tentava estancar o sangue do pescoço, seu rosto estava pálido, as mãos tremiam. Fiquei feliz em vê-lo, agora contar a ele e fazê-lo entender.

Me abaixei e segurei suas mãos, expondo o corte em seu pescoço. 

— Não se preocupe, William, tá tudo certo agora. A gente já sabe tudo um sobre o outro, a gente não precisa mais fingir. — Eu estava muito feliz, pois poderia ajudá-lo e fazê-lo entender. — Eu vou te ajudar, tá. Meu dedo deslizou pelo corte e eu não pude resistir ao impulso de sentir o calor da carne dele por dentro. — Sabe, eu só queria participar, ser aceita por vocês, e só queria que você fosse mais legal com a Lili, puxa, como eu amo a Lili. — O corte não era grande, Gabi deve ter usado a faca dos petiscos, mas meu indicador deslizou para dentro e eu entendi porque Liliane havia gostado tanto de me ferir. — Mas você tinha que se meter entre nós, né, mas agora você vai entender como eu me senti.

Ele tentava dizer algo, mas o som gorgolejante era incompreensível e eu estava tomada pelo júbilo vindo do sangue. Não era tão doce quanto o de Liliane, mas fiquei satisfeita ainda assim.

Meu corpo relaxou, eu me deitei no chão sentindo o sangue encharcar minhas roupas, e deixei a escuridão me abraçar.

Acordei, meus braços e pernas estavam pesados e pegajosos.Tudo parecia ainda mais escuro e havia sido tomado por um silêncio absoluto. O odor ferroso intenso não me causou tanto enjoo quanto o mix de cheiros de quando chegamos, talvez por ser natural, honesto.

O silêncio durou até meu cérebro entender que estava acordado, então ouvi sons molhados, sussurros trêmulos e gemidos. Eram sons dolorosos, de quem se agarra aos últimos fios de sanidade e vida.

Alguém chorava.

Um líquido viscoso e escuro chovia, ainda quente, das entranhas penduradas no lustre sobre mim.

Brega ou chique?

Tentei me levantar, mas meus braços dançaram desajeitados sobre o chão escorregadio, e meu rosto colidiu contra o piso empoçado. Minha boca se encheu com o gosto rançoso do sangue que já começava a cheirar mal e eu quase vomitei.

Minha visão estava um tanto embaçada, mas ao virar o rosto, vi Liliane caída ao meu lado. Seu peito subia e descia em uma respiração dificultosa, parte do nariz estava pendurada no rosto. Tentei me arrastar para mais perto dela. Tive vontade de gritar pedindo desculpas, dizer que sentia muito e não queria tê-la deixado desconfortável, porque eu a amava e nunca quis machucá-la. Quando minha voz saiu, não passava de um som lamurioso, incompreensível e cheio de dor, remorso e medo.

Estávamos mesmo no inferno.

Foi como se o pensamento conjurasse algo que agarrou as minhas pernas e me arrastou com facilidade. Tentei lutar e me soltar, contudo não havia mais força nenhuma no meu corpo, e quando fui colocada sobre o palco já não conseguia mais nem gritar.

Meu braço tocou em alguém e ao lado, vi o rosto dilacerado e apavorado de Gabi, a pele pendurada sobre suas bochechas cheias e tão rosadas, as roupas rasgadas expondo hematomas e cortes na pele bronzeada. Ela chorava, ao menos pensei ser um choro, aquele som miserável.

Então, ouvi uma risada, e de alguma forma sabia a quem pertencia.

— Bom, duas de seis, foi um bom número, criança — disse a voz rouca e sensual da mulher de cabelos vermelhos. — Elas estão meio acabadinhas, mas nada que impeça a celebração.

— Obrigada, senhora. Pensei que pudessem aproveitar a outra garota também, os caras, eu sabia que não tinha como. — Meu coração gelou quando reconheci a voz de Marcus. — Sempre tem alguém pra surpreender, para o bem ou para o mal.

— Sim, sim, mas com as outras oferendas, temos um bom número. Vocês nos fizeram felizes essa noite.

Tentei levantar a cabeça, mas ela pesava uma tonelada, e estava me esvaindo em sangue e a consciência escapava de mim.

— Marcus. — consegui sussurrar.

Logo o rosto dele tomou a minha visão.

— Oi Sarah. — Marcus segurou a minha mão com carinho. — Fica calma tá, vai acabar logo. — Ele beijou meus dedos, tingindo os lábios de vermelho. — Eu sabia que você não ia me decepcionar.

— Vamos, criança, vamos começar. — disse a mulher.

Passos se aproximaram, sussurros na escuridão, e nos cercaram. Além de Gabi e eu, havia mais alguns corpos no chão. O pouco que consegui ver, me revelou o círculo de pessoas formado pelos funcionários do bar, com suas roupas de couro, torsos a mostra e rostos provocantes, e alguns, bem poucos, clientes. 

Um momento de silêncio se seguiu, não havia mais nenhum choro ou gemido, apenas meu próprio coração batendo e a respiração ruidosa da Gabi. Levei minha mão à dela e segurei, tentando oferecer conforto, mostrando que mesmo se estivéssemos no inferno, ela não estava sozinha. Me lembrei de suas palavras ríspidas, e apertei ainda mais seus dedos nos meus, mesmo sabendo que a dor que eu poderia provocar seria ínfima perto do que ela já estava sofrendo.

 — A colheita foi realizada, que se inicie o ritual de boas-vindas.  — A voz da mulher soou alta, clara e poderosa.

 — Credo in Deum, Dominum nostrum, qui regnat in tenebris.  — Todos repetiram em uníssono.

 — Que os portais se abram, e os emissários dele habitem em nós, entre nós.

 — Credo in Deum, Dominum nostrum, qui regnat in tenebris.

 — Aqueles que ouviram a voz do Senhor Obscuro e toda a sua sabedoria. Venham!   

— Venham!

 — Fiat hoc.

 — Fiat ita.

Aguardei, espremendo os dedos de Gabi, que alguém se aproximasse e enterrasse um punhal no meu coração, ou então, me esquartejasse ainda viva. Desejei do fundo do coração que fosse a mulher de cabelos vermelhos.

No entanto, nada podia chegar nem perto do que estava por vir.

Uma névoa escura me envolveu e me aqueceu, me tornando tão leve a ponto de me desgrudar do chão. A gravidade já não tinha poder sobre mim e eu sabia que o o meu sangue escorria pelo meu rosto e pingava no chão, e aquilo me fez feliz.

A sensação de leveza e liberdade durou apenas um segundo e logo foi substituída por uma profunda agonia centrada em meu peito, e que explodiu minha caixa torácica com o som de ossos quebrando se misturando aos meus gritos cada vez mais fracos. Fogo foi derramado sobre meu coração exposto e escorreu por cada uma de minhas veias, consumindo cada pedaço do meu corpo, cada órgão, cada membro, e a morte passou a ser uma alternativa tão, tão doce e sensata.

Mais som de ossos.

Meu corpo se alongou e contorceu, minhas articulações se dobraram em ângulos impossíveis enquanto minhas costelas retornavam ao lugar, e a dor ia cedendo espaço a uma sensação de… ausência. E de repente, eu estava em pé, e meu olho enxergava tudo com perfeição. Meu corpo ereto se moveu devagar, examinei minhas mãos, toquei minha pele, respirei fundo o ar impregnado com o cheiro de sangue e incenso. E eu já não estava mais sozinha em meu corpo, e quando abri a boca, não foi minha voz, nem minhas palavras que disseram:

— Finalmente.

Me agitei, presa na minha própria cabeça, mais uma vez forçada a contemplar o abismo entre a minha consciência e meu corpo, ambos ocupando o mesmo espaço, porém desconectados. Era como tentar alcançar uma porta no fim de um corredor que se alongava e alongava, e não importa o quanto eu corresse, jamais chegaria ao seu fim.

Através dos meus olhos, mas sem poder movê-los, eu vi as pessoas do círculo sorrindo e uma por uma, virem até mim e beijar minhas mãos. 

Tentei me livrar daquele torpor mais uma vez, mas da minha garganta, uma voz disse:

 — Shh, não se preocupe, serei melhor guia que os anteriores.  — Soava como eu, mas havia algo a mais, algo perigoso.  — Você não precisa esconder nada de mim.

A mulher de cabelos vermelhos se aproximou e eu senti seus lábios macios e cálidos contra a pele das mãos que não eram minhas. Senti o calor que emanava do corpo dela, seu cheiro de perfume e suor, e meu desespero, aos poucos, foi aplacado. E como uma demonstração de boa vontade, me foi permitido retomar, por alguns segundos, o controle de meu corpo. E para selar esse novo contrato, tomou o rosto da mulher entre as mãos, e beijei-a como nunca havia beijado ninguém.

Nunca mais voltei para a casa, ou para a faculdade. Temos coisas muito maiores, muito mais importantes para fazer. Um caminho a ser preparado, um mundo inteiro de sensações para explorar.

Sou uma passageira no meu próprio corpo, acho que na verdade, sempre fui. Só que agora, vou curtir a viagem.



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