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Maldição

Atualizado: 16 de abr.

Conto de Keyla Fernandes






Sobre o conto


Mais um conto antigo, embora não me lembre exatamente de quando eu o escrevi, creio que foi entre 2016 e 2017.

Só gostaria de comentar que esse conto é baseado em um relato de minha vó paterna. Ela contava que, quando meu tio, irmão mais novo do meu pai, era um bebê ainda não batizado, um lobisomem veio buscá-lo e passou a noite rondando a casa.

Independente de crer ou não na existência de lobisomens, esse relato sempre me fascinou, e minha avó sempre o contava com seriedade. Transformá-lo em um conto, no qual tomei algumas liberdades, é minha forma de manter viva essa memória e me lembrar de minha avó como uma ótima contadora de histórias.




Maldição


O céu pesava no horizonte. As nuvens haviam se reunido durante o dia, anunciando a tempestade iminente. A noite havia chegado sem aviso, e ali, longe das luzes da cidade, a escuridão abraçava as pequenas roças e a mata além delas. Pequenas luzes brilhavam ao longe, em casinhas nas quais pessoas cansadas terminavam suas refeições antes de ir para a cama.


As primeiras gotas caíram com leveza no solo, acariciando a terra antes de arremeter contra ela com violência. Logo a água, o vento e os trovões, tocavam a sinfonia ensurdecedora da tormenta, isolando os habitantes daquela região em seus casebres, rezando para que seus telhados não fossem levados, nem suas plantações arrasadas.

Por entre os caminhos de terra  escondidos agora pelas correntes de água, ele corria a passos trôpegos, tentando fugir, mesmo sabendo ser em vão. Seus pés, em contato com com a grama e a lama misturadas pela água, faziam um ruído molhado que poderia considerar agradável em outra ocasião. As estrelas e a lua haviam sido ocultadas pelas nuvens tempestuosas. O céu, de tonalidade cinzenta, adquiria um brilho prata avermelhado quando golpeado por um relâmpago.


Ele continuava sua corrida desesperada. Respirava com dificuldade, o coração batia em um ritmo frenético e seu corpo se aquecia, febril.

Então a tão temida dor o acometeu. 


Primeiro uma pontada no peito acompanhada pelo gosto de sangue na boca, e então espalhou-se pelas veias, acompanhando as batidas de seu coração, tornando-se insuportável e o jogando ao chão de joelhos. 

Sentiu como se sua pele desprender dos músculos aos poucos, enquanto um zumbido infernal invadia seu cérebro.

Os trovões retumbantes encobriram seus gritos.


***


A pequena casa cercada com arame farpado ficava enterrada no canto mais distante do distrito. Quando o sol se punha, parecia se esconder atrás dela, erguendo-se solitária, a quilômetros de distância de seus vizinhos. Sua fachada amarela contrastava com a cor de chumbo daquela noite, e os animais já se encolhiam em seus abrigos, sentindo a mudança dos ventos.


João comia calado enquanto seus pais conversavam. 


— O padre viajô pra cidade, acho que leva uns dia ainda pra voltá. — dizia o homem de pele escura, enquanto cavava o prato de comida com vontade. 


Um relâmpago iluminou a cozinha. 


O trovão veio com atraso, mas com força o suficiente para fazer a mulher se benzer e o garoto pular da cadeira.


— Diacho. Num tem ninguém na igreja pra tratá desse assunto? — perguntou pequena mulher de olhos azuis. 


O homem apenas negou com a cabeça e continuou comendo. Estava mais interessado em calar o seu estômago do que ouvir as lamúrias da esposa. Sem a ajuda dela, o trabalho na roça ficara mais pesado e ele, mais cansado.


— Ocê tinha que levá o Joãzinho pra trabaiá na roça amanhã, pra te ajudá. — Ela mudou o assunto.


— De jeito maneira. Ele acabô de arranjá trabaio na oficina do Tião. Lá ele pode ganhá um dinheirinho bão até. E nóis precisa de dinheiro.


O menino baixou os olhos e engoliu o medo da chuva com uma colher da galinhada. Era bom ver o pai satisfeito com seu novo trabalho, e queria mostrar já ser um homem. Tinha treze anos e precisava ajudar a manter a família.


— Mãe, o Valdecir tá chorano, acho deve tá cum fome. — A figura de uma menina morena de longas tranças surgiu tímida na cozinha, botando os olhos compridos para cima da panela.


— Já tô ino. E ocê vem jantá logo, Cida.


Em alguns segundos o choro do bebê se tornou alto e estridente, incomodando o homem, cujo único desejo era jantar em paz. Maria correu para o quarto do casal, onde a criança berrava no berço. Lá fora, a tempestade ficava cada vez mais forte.


João terminou de comer em silêncio e se levantou para tirar o prato.

— Deixa isso aí, minino. A Cida arruma a mesa depois. — Ordenou o pai.

O garoto olhou para a irmã como se pedisse desculpas e foi colocar a roupa de dormir. Sentia falta de fazer o dever de casa naquele horário, mas o trabalho tomava todo seu tempo agora, e a escola havia se tornado lembrança infantil.


Deu uma espiada pela janela. Nas noites de lua clara podia ver todo o quintal, um pedaço da roça e da estrada que passava por ali. Agora era quase impossível enxergar qualquer coisa.


Viu algo brilhar no horizonte, como uma linha descendo do céu, iluminando toda a propriedade e além por uma fração de segundo. Tapou os ouvidos e conseguiu abafar o som do trovão, dessa não foi pego desprevenido. Achou melhor parar de olhar para fora. Teve um medo repentino de que outro clarão revelasse algo escondido nas sombras.


Saiu da janela, trancando-a. Balançou a cabeça para espantar os pensamentos infantis e foi se deitar. Teria de acordar com as galinhas no dia seguinte, mas o choro de seu irmãozinho custou a cessar. Os gritos se tornaram mais agudos e penetrantes, fazendo a cabeça de João doer. Encolhido na cama, tentando lutar contra aquele som, ouviu a discussão:


— Mas por que diabo esse muleque não fica quieto? — A voz do pai competia com o barulho da água caindo no telhado.


— Calma Tonho, ele deve de tá com dor. — O tom da mulher era sentido e um pouco receoso.


— Nóis precisa acordá cedo amanhã, Maria. Faz esse muleque ficar quieto.


— Cê sabé, né, por que ele tá assim? 


— Arre, muié, não vem com essas conversa pro meu lado de novo, não.


— Mas é verdade. Nóis precisa falá logo com o padre, Tonho.


Entre o choro do irmão e os resmungos do pai, João se concentrou e começou a jogar um jogo que o ajudava a dormir. Fechou os olhos e desenhou o quintal da casa em sua mente. O chão de terra batida, o caminhozinho feito com pedras de uma construção abandonada, o jardim cheio de ervas curativas e flores pequenas, o curral de madeira meio torto. Logo não era mais possível segurar os pensamentos, e se deixou flutuar em direção ao sono enquanto tentava adivinhar que figura sombria era aquela esperando lá fora.


***


Quando recobrou a consciência, a dor havia passado, restando apenas aquela maldita sensação de leveza, batimentos acelerados e a fome profunda, insuportável.


A chuva não dava trégua, mas não se importava.


Ainda não havia se acostumado com aquele estado perturbador de liberdade. Passara a vida toda preso por amarras invisíveis e agora nada mais o impedia de fazer o que quisesse. No fundo sabia: mesmo sendo inevitável, isso não era algo essencialmente bom.


O corpo se levantou e se alongou, forte e destemido. O frio da noite já não incomodava mais. Não havia escolha, sabia muito bem como aquele embate interno acabaria. 


Esse era o significado de maldição: algo do qual não se podia fugir. 

Aquela inclemente sensação o seguiria para onde quer que fosse, por toda sua vida e nem mesmo Deus seria capaz de livrá-lo dela.


Antes de começar a dar os primeiros passos, os últimos vislumbres de pensamentos racionais passaram por sua mente conturbada. Porém logo todos eles foram obliterados pela fome cantando em sua barriga. Sua respiração criava pequenas nuvens claras de vapor que desapareciam no escuro da noite. A lua estava encoberta, e ainda assim podia sentí-la em seu âmago, controlando-o por completo.


***


Um trovão alto acordou Valdecir que pôs-se a berrar mais uma vez. Logo a casa acordava junto. João não era de reclamar, mas só queria uma noite de sono tranquilo para poder trabalhar descansado no outro dia. Desde o dia de seu nascimento, o irmão não dava sossego.


A tempestade lá fora açoitava o céu com vento e relâmpagos. Naquele fim de mundo as chuvas eram brandas, contudo quando uma tempestade chegava, costumava ser avassaladora.


João sentiu sede e foi buscar um pouco de água. Ouviu os pais discutindo e o irmão ainda chorando. Logo, Maria apareceu com a criança enrolada em uma manta, tentando dar-lhe o peito para acalmá-lo.


— Que que tá fazeno acordado, Jãozinho?


— Só vim bebê água, mãe.


Ao longe ouviram um som nada parecido com vento ou trovoada. 

Começando como um lamúrio longínquo, e aumentando até se tornar uma ameaça pairando na noite. O uivo fez Maria apertar o filho contra o colo enquanto arregalava os olhos estremecendo. Engolindo em seco ela balbuciou:


— Fala pro teu pai pegá a ispingarda.


João não compreendeu, mas sabia que aquele som era o prenúncio de algo ruim, e obedeceu. O homem protestou, já estava enrolado nas cobertas e resmungou chamando a esposa de doida.


O uivou soou de novo, agora mais perto, fazendo a choradeira quase controlada do bebê recomeçar. João percebeu algo errado quando a mãe desesperou-se para calar a criança e começou a rezar.


— Pelamor de deus, hômi, vem cá.— Implorou ela ao marido. Porém já era possível ouvir passos chegando velozes do lado de fora da casa. Pesados, eles iam de um lado para o outro em frente à porta.


— Pai, tem um bicho lá fora. — avisou João.


Soltando um “arre”, o homem foi até a cozinha, onde estavam a mulher e os filhos. Mas os ruídos haviam cessado. Tonho torceu o nariz e já retornava para a cama contrariado, quando ouviu o grito estridente de Cida.


Todos correram para o quarto dividido entre a menina e o irmão e a viram em pé ao lado da cama com os olhos arregalados apontando para a janela. Antes que pudessem perguntar algo, ouviram algo arranhar a parede como se fossem galhos grossos balançados pelo vento contra a madeira. Algo forçava a janela de madeira, que era tudo entre aquilo lá fora, e a família amedrontada. 

Maria se encolheu ao ouvir um rosnado gutural e ameaçador. Desesperada, ela olhou para o marido com os olhos cheios de desesperança.


— A ispingarda, Tonho.


— Vô pegá. — disse o homem, ainda contrariado. — É só um cachorro do mato.


Mas João sabia, tanto quanto a mãe, que não era. 


O rosnado se tornou mais alto e urgente, era possível ouvir também a respiração pesada e irregular. Os arranhões arrancavam lascas da madeira da janela que sucumbiria a qualquer momento.


Tonho se dirigia para a porta, mas foi impedido pelo filho.


— Num vai, não pai. Isso num é cachorro do mato.


O medo nos olhos do filho colocou algum senso na cabeça do homem teimoso.


A criatura voltou a rodear a casa. Pisava com raiva no chão, grunhia, ameaçador, enquanto arranhava e forçava todo e qualquer lugar que pudesse oferecer uma forma de entrar. Golpes soaram na porta da cozinha. A fera dava-lhe pancadas ritmadas, algo impossível para um cachorro do mato. 


Colocando a espingarda nas costas, Tonho pegou a mesa, e com a ajuda de João e a usou para fazer uma barricada. Maria se encolheu no canto da cozinha com Valdecir no colo, quanto mais a criança chorava, mais urgentes se tornavam os rosnados e arranhões. A filha a abraçou e as duas rezaram para que a madeira as protegesse daquela ameaça como o telhado as protegia da tormenta.


Então, silêncio.


A chuva diminuiu e o vento se acalmou. Tudo estava quieto lá fora, como se não tivesse passado de um pesadelo trazido pela tempestade. A família quase respirava aliviada quando algo atravessou a madeira da parede e agarrou o ombro de Cida.


Desesperada, a menina gritou e se debateu.


A grande mão tinha aspecto animalesco. Era duas vezes maior que a mão de um homem, coberta de pelos, mais parecendo a pata de um animal selvagem. Suas garras se enterraram na carne da menina já sem forças.


Tonho conseguiu enfiar a espingarda no buraco e dar um tiro, fazendo os ouvidos da filha zunirem. Com um urro, a besta se afastou, libertando Cida de suas garras. Tonho se aproximou da abertura para espiar lá fora e ver com o que estava lidando, mas passos foram ouvidos de novo. Desta vez vindos de cima. 


O pequeno coração de João disparou em seu peito e ele encarou o pai. Tonho, munido com toda a coragem que conseguiu arrumar, apontava a arma para cima. 


Ao olhar para mãe, João viu seu rosto empalidecer. Ela o olhou com profunda dor e suas lágrimas escorreram como as suas últimas gotas de esperança.


Algo se quebrou logo acima de sua cabeça, e o garoto sentiu as gotas da chuva molharem seus cabelos. 


Um tiro.

Um grito.

Escuridão.


***


O padre Armando acordou com o cantar do galo.

O sol já nascia, e logo começariam os serviços na igreja.

Sentiu o corpo revigorado por uma boa noite de sono e respirou fundo antes de abrir os olhos. Tudo havia sido um terrível pesadelo.

Mas a realidade veio a golpeá-lo instantes depois.


Levantou-se em meio à velha cozinha iluminada pelo buraco no teto. Ainda sentia o sabor da carne doce e tenra em sua boca. 


A família jazia dilacerada, os braços da mãe haviam sido arrancados com violência.


Maldição é algo do qual não se pode fugir. 


FIM


Gostou do conto?

Considere conhecer minhas outras obras.









































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